De Istambul a Rio de Janeiro, as lutas pelo comum nas cidades rebeldes


Fig. 1: “Eu tô lutando pelos 10% do PIB para educação e para saúde, assim como pelo aumento da frota e da fiscalização da capacidade máxima dos ônibus, que aqui não é controlado. Isso é muito importante para fazer imediatamente. Este grande garrafão de plástico cheio de água é para botar dentro as bombas de gás lacrimogênio. É para nos proteger do lacrimogênio, aprendi isso num video na Turquia. É da galera, um bem comum.”3

Pablo de Soto (org.)1 2

Essas palavras de um manifestante num protesto em junho no Brasil exemplificam com dramática intensidade o conflito atual, em torno da reprodução da vida nas metrópoles contemporâneas. O modelo hegemónico neoliberal imposto pelas elites financeiras, – onde o sucesso do capital não vem acompanhado de desenvolvimento para a maior parte da população, – está sendo confrontado pelas revoltas que proliferam nas ruas de quase uma centena de países4, desde 2011, no novo ciclo de lutas inaugurado nos países árabes do Mediterrâneo.
Nessa encruzilhada, a velha distinção entre o privado e o público não é mais capaz de responder à questão fundamental de como compartilhar recursos vitais. O comum emerge ao mesmo tempo como o objeto – a demanda de mais recursos para os serviços públicos de saúde e educação – e como a forma de organização – as acampadas nas praças ou, no caso extremo, a garrafa de água que a multidão usa para defender-se do gás lacrimogênio. A cidade, seja Madrid ou Reykjavík, Cairo ou Oakland, se torna o cenário genérico dessa luta.

Commonwealth como laboratório

Mapping the commons (Mapeando o bem comum) é um projeto de exploração e representação do bem comum urbano que começou em Atenas5 no final de 2010, ano em que a Grécia perdeu a sua independência financeira. Meses após o primeiro memorando do FMI e a implementação das primeiras medidas de austeridade, a capital grega foi chamada a desempenhar um novo papel. Atenas foi convidada a se tornar a cidade “beta” da crise, a enfrentar, pela primeira vez na Europa, o impasse do capitalismo da doutrina de choque. A metrópole parecia vulnerável, mas também incansável, e seu território foi aquele em que formas antigas e novas de resistência e contrapráticas estavam prestes a ser formadas, mas também desafiadas.
Inspirado pelo pensamento de Hardt e Negri no livro Commonwealth6, a iniciativa Mapping the commons of Athens teve como objetivo estudar e empoderar essas formas emergentes de resistência e produção de riqueza social. Partimos da hipótese do comum, elaborado por eles sobre a idéia de que, em nosso mundo atual, a produção da riqueza e a vida social dependem em grande medida da comunicação, da cooperação, dos afetos e da criatividade coletiva. O comum compreenderia então os ambientes de recursos compartilhados gerados pela participação de muitos, e que constituem o tecido produtivo essencial da metrópole contemporânea. Se fizermos esta conexão entre o comum e a produção, poderemos pensar na economia política, no poder, nos rendimentos e nos conflitos.
O projeto adquiriu a forma principal de laboratório temporário, onde se encontraram ativistas, artistas, cientistas sociais e estudantes de diferentes disciplinas para explorar e discutir os bens comuns da cidade. Uma busca que tomou a forma de um processo de mapeamento. Entendemos o método da cartografia segundo o esquema proposto por Deleuze e Guattari, e do modo como artistas e ativistas sociais a tem usado durante a última década, como uma atuação que pode se converter em uma reflexão, uma obra de arte, uma ação social. Se a cidade é “a fonte do comum e o receptáculo no qual ele flui” como os filósofos discutem, uma cartografia dos bens comuns de Atenas (uma cidade em situação de crise) seria capaz de realçar suas dinâmicas vivas e suas possibilidades de mudança.
Com esse objetivo em mente, a equipe se deparou com um desafio interessante para rastrear a riqueza da metrópole. Para olhar além do “público” e do “privado” e voltar-se para os afetos, línguas, relações sociais, conhecimentos e interesses da população. Para construir uma cartografia com base nos bens comuns, que em grande medida são abundantes, fluidos e instáveis, era necessário tentar responder a algumas perguntas difíceis: pode o comum ser “localizado” na metrópole contemporânea? Que novas práticas de “fazer comum” ou economias sociais surgiram como resposta à crise? Como o comum está sendo protegido das privatizações e das políticas draconianas de austeridade? Quais são as vantagens e os riscos da produção desta cartografia em tempos de agitação e de rebeliões?

Os tipos de bens comuns mapeados em Atenas foram baseados na coletividade, sociabilidade e no compartilhamento, pois incentivam o acesso livre e aberto. O banco de dados criado foi rico e amplo, variando a linguagem como principal bem comum aos repositórios de software livre; de estacionamentos ocupados e convertidos em parques autogeridos – como Navarinou no coração da cidade – às plataformas digitais para upcycling de objetos; da raiva contra as instituções financeiras e sua expressão coletiva nas ruas à rede de milhares de nós abertos da rede wi-fi comunitária da cidade; da massa crítica de ciclistas que exigem vias que priorizem as pessoas e os ciclistas às plataformas de P2P e de compartilhamento de conteúdos digitais; dos animais em liberdade como companheiros dos humanos ao grafite como expressão artística nas parades das ruas da cidade. Documentários de curta duração foram produzidos sobre os estudos de caso, formando parte de uma vídeo-cartografia interativa na internet.
A segunda edição do laboratório aconteceu em Istambul7, num momento em que a cidade estava sendo transformada radicalmente com megaprojetos e privatizações em larga escala, devido ao aumento das pressões das políticas e empreendedorismos neoliberais. Os bens comuns urbanos tais como os espaços públicos, o direito de habitar na cidade, o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão nesses processos, e os espaços verdes estavam sob ameaça de ser reduzidos, numa intensidade jamais vista. Novas leis criadas para transformar locais sob risco de desastre natural foram utilizadas pelas autoridades para demolir e reconstruir as áreas de habitação no centro de Istambul, desapropriando os inquilinos ou removendo-os para habitações na periferia. A lei anunciando a venda das florestas estaduais fez com que as terras comuns e bosques se tornassem vulneráveis ante o agresivo desenvolvimento imobiliário.
Na data do laboratório, em novembro de 2012, um enorme número de projetos começou a transformar espaços públicos, praças e parques em áreas de demolição para ser transformadas, posteriormente, em espaços privados. O Parque Gezi, na praça Taksim, era o epicentro geográfico e simbólico dessa destruição, onde duas centenas de árvores seriam cortadas para construir um shopping center. Esta assumiria a forma do antigo edifício do quartel militar otomano no local, para abrigar atividades culturais e comerciais controladas pela iniciativa privada. A praça Taksim, um dos lugares mais importantes para a participação cidadã e para o exercício do disenso, foi transformada num canteiro de obras, para ser um espaço vazio, sem conteúdo. A vida foi esvaziada da praça, o cenário político das grandes manifestações estava à deriva devido ao longo prazo das obras, e dificilmente voltaria a existir após as alterações planejadas.

Nesse contexto, a oficina de mapeamento desempenhou um papel de intermediação, para compreender e revelar os conflitos em relação aos bens comuns de Istambul, levantar discussões em torno do próprio conceito de comum e, mais importante, participar da ação na cidade quando as lutas pelo comum estavam sendo realizadas, cartografando e produzindo vídeos desses momentos históricos. Para isso, o laboratório teve lugar inicialmente na rua, através, por exemplo, de entrevistas e filmagens em Fener-Balat-Ayvansaray, onde uma plataforma de discussão e ação foi criada com êxito contra a nova lei de transformação do espaço urbano. Em Tarlabasi, participando de uma festa de casamento curda na rua e de uma cozinha de apoio aos imigrantes. Na Universidade Técnica de Istambul, entrevistando professores e estudantes participantes de uma manifestação contra a desinformação e a censura televisiva dos protestos. E, claro, na praça Taksim, onde uma grande plataforma se articulava para defender o parque Gezi e a praça como o lugar da democracia da cidade, uma resistência que se transformou em acontecimento global poucos meses depois.

Cidades rebeldes conectadas

“Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil saindo da inércia!
Acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia!”8

Antes de junho de 2013, essas frases seriam gritos improváveis, quase impossíveis. Depois de junho, qualquer pessoa que tenha participado nos protestos do Brasil reconhece nelas a voz das ruas. Os primeiros atos contra o aumento do passagem de ônibus organizados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo colocaram a pauta da mobilidade urbana no centro do foco, e os jovens do Rio entraram numa forte sinergia global. Nessas mesmas duas semanas, as mídias sociais e os blogues ativistas tinham divulgado a formidável resistência do povo turco, na praça Taksim de Istambul. A luta popular contra a destruição do parque Gezi se tornou um ícone. E, de alguma forma, as lutas urbanas dispersas acharam seus gritos comuns. Diren Gezi, que significa “resistência Gezi”, entrou em contato com o movimento-coletivo Fica Ficus de Belo Horizonte. O movimento Salve o Cocó de Fortaleza gritava, “o parque Cocó é nosso parque Gezi”. Em São Paulo e no Rio, as ruas foram sendo ocupadas, entrelaçadas por seus gritos de guerra e palavras de revolta que viralizavam nas redes digitais.

Por que, de forma tão súbita, as lutas urbanas ficaram interconectadas? Por que duas contas turcas de twitter apareciam no grafo de visualização de redes do primeiro grande ato do Movimento Passe Livre em São Paulo? Por que as bandeiras brasileiras estavam presentes no parque Gezi?
Sem ter respostas definitivas, a explosão das lutas no Rio de Janeiro a partir das jornadas de junho transformou a metrópole carioca no exemplo mais nítido das cidades rebeldes9 de que fala David Harvey. Do “Maraca é nosso” (a proposta contra a privatização do Maracanã) aos Comitês Populares da Copa, passando pela proliferação de aulas públicas e as ocupações temporárias, o espaço urbano e sua gestão/uso como bem comum adquiriou uma pulsão coletiva sem precedentes:
Mas quando arrombaram a porteira da rua, muitos outros desejos se manifestaram. Falamos de desejos e não de reivindicações, porque estas podem ser satisfeitas. O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multitudinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva. Tem a ver com a certeza de que o transporte deveria ser um bem comum, assim como o verde da praça Taksim, assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a cidade, e de que toda espécie de “enclosure” é um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum.10

Mapeando o Bem Comum do Rio de Janeiro foi proposto no calor dessa insurgência multitudinária, trazendo a experiência do aprendido em Atenas e Istambul. Realizar, pela primeira vez, o laboratório no continente sulamericano tinha enorme interesse, por ser um território da maior relevância e experimentação política e social na última década. Adicionalmente, o Brasil, como toda a América Latina, tem características históricas e presentes próprias em relação ao comum. Essas relações particulares começam com a linguagem, ainda que a língua portuguesa não tenha uma palavra exclusiva equivalente a “commons” (inglês) ou “procomún” (espanhol). Porém, a história de Portugal tem fatos, processos e métodos, ao redor da propriedade ou da gestão coletiva, que estão dentro do campo semântico dos “commons”. De fato, na Inglaterra e na Espanha, foram proporcionadas mais práticas ao redor da ideia de comum, ao longo da história, principalmente em termos de governança. Mas a história portuguesa muda no momento da expansão colonial. Foi no Brasil, terra de encontro de culturas africanas, indígenas e portuguesas onde as “práticas do comum” foram e são importantes.
Esse comum advém de tradições ibéricas (faixanais, rossios, propiedades comunais), da cultura afro (quilombos, criação cultural coletiva, propriedades conjuntas) e indígenas (propriedade coletiva, malokas). Do mutirão ao conceito de ‘comunidade’ que substitui a palavra favela, o Brasil é uma celeiro de práticas do comum. E de fato, como sabemos a partir das pesquisas de Elinor Ostrom, não “existe” bem comum sem uma comunidade que cuide desse comum. O “commonning” – as práticas do comum – é uma condição necessária da existência do bem comum.

No Rio de Janeiro, o mercado e o capitalismo estão castigando o bem comum sem piedade. O capital depreda o comum, transforma-o em mercadoria, seja uma música funk criada de forma coletiva e que acaba numa gravadora internacional – ou proibida, quando a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) se instala numa favela – ou quando um espaço urbano coletivo é inserido na onda da especulação imobiliária. O comum é transformado numa grife, em mercadoria. Mas o poder público também pode ser um dos grandes inimigos do comum – como na privatização do Porto Maravilha, do Estádio do Maracanã ou através das remoções forçadas de favelas, como a Providência, Metrô-Mangueira o a Vila Autódromo. Essas questões, no contexto de uma metrópoles historicamente em estado de exceção como o Rio de Janeiro, foram o objeto do mapeamento.
O laboratório se desenhou como um processo orgânico, aberto, expandido que ultrapassara os muros da academia11. As ferramentas adotadas são as mesmas que as empleadas pelos movimentos como o 15M ou Occupy: blogue12, pads, fanpages e mapas, que incentivam o trabalho em equipe e o pensar coletivamente. O método13 do laboratório propõe utilizar parâmetros14 para caracterizar os bens comuns selecionados, que se tornam uma matrizcomparativa online que é um das maiores inovações do projeto.
Quatro meses depois de ter começado, alguns resultados da pesquisa15 são apresentados a seguir, sobre a demanda da mobilidade urbana como direto do comum, o papel de um espaço físico central na sua relação com a democracia, e umas práticas de fazer comum que emergiou com a revoltas: as assembleias populares.

Mobilidade urbana

Transporte é direito, não mercadoria. A frase reproduzida em centenas de cartazes durante os protestos contra o aumento das passagens não é trivial. Em praticamente todas as cidades do país, o serviço de transporte coletivo urbano é operado pela iniciativa privada. No Rio de Janeiro, há fortes indícios de que o sistema de transporte seja operado por um cartel, que detém o controle sobre os preços das passagens. Grandes financiadoras da campanha eleitoral do atual prefeito, as empresas de ônibus cobram essa fatura nos contratos, que prevêem uma sequência de aumentos nas tarifas – todas acima da inflação. A distinção entre o público e o privado se revela frágil em um contexto no qual se confundem os interesses das empresas e da própria prefeitura.
Enquanto o prefeito Paes anuncia os aumentos tarifários e o governador do estado, Sergio Cabral, utiliza um helicóptero para seus deslocamentos privados, a população sofre diariamente com ônibus precários, superlotação, atrasos e falta de segurança nos coletivos. Nos trens da Supervia, os usuários são tratados como gado. Nas barcas, o serviço foi privatizado em 1998 e, desde então, a maioria dos acordos estipulados nos contratos não foi efetivada. A travessia entre os terminais de Charitas e Praça XV é a segunda mais cara do mundo (fazendo-se um comparativo entre distância e preço total), ficando atrás apenas do passeio pela Estátua da Liberdade em Nova Iorque – lembrando que, no caso da travessia Rio-Niterói, não se trata de um passeio turístico, mas de um deslocamento pendular que centenas de milhares de trabalhadores e estudantes enfrentam cotidianamente. O transporte é hoje, de acordo com o IBGE, o terceiro maior gasto da família brasileira e mais de 37 milhões de pessoas não podem usar o transporte coletivo por não ter como pagar.
Nesse contexto, a afirmação do transporte público como direito se insurge contra o controle privado sobre o direito de ir e vir das pessoas. As lutas contra o aumento da passagem, que se amplificaram consideravelmente desde junho de 2013, colocaram em cheque a lógica mercantil que se encontrava, de um modo geral, naturalizada como algo evidente e imutável. Durante esse período de reivindicações, questionamentos e embates, foi se consolidando a noção de que a mobilidade urbana diz respeito fundamentalmente ao nosso direito à cidade e de que o controle privado sobre o sistema de transporte restringe esse direito, impossibilitando uma grande parcela da população de circular livremente pela cidade.
Nesse sentido, a mobilidade urbana emerge como um comum no próprio processo de luta pela sua retomada. As manifestações, assembleias e ocupações que passaram a fazer parte do cotidiano da cidade, desde junho, sinalizam a produção do comum tanto como objeto dessas lutas coletivas, quanto como forma de organização, buscando proteger o comum das privatizações das parcerias público-privadas e, ao mesmo tempo, instituindo novas práticas de “fazer comum”. É interessante notar, nesse aspecto, a centralidade do tema da mobilidade nesses espaços de produção do comum. Além de estopim das primeiras manifestações de junho, as questões relativas à mobilidade vem atravessando e constituindo os espaços de construção (do) comum. Isso ocorre desde a primeira ocupação da Câmara Municipal, passando pelas mais criativas manifestações e intervenções pela CPI dos ônibus – OcupaÔnibus, Casamento da Dona Baratinha16, Baratox, para citar apenas algumas que ficaram mais conhecidas – até a organização, após o fracasso da CPI, de uma Comissão Popular de Investigação dos Ônibus.
Se os conflitos podem ajudar a localizar a existência de comuns em disputa, em 2013, as ruas do Rio e do Brasil deixaram muito claro que a mobilidade urbana é hoje um dos mais importantes comuns em processo de acirrada disputa contra os interesses do capital.

A Cinelândia e a democracia

A Avenida Rio Branco, as ruas Araújo Porto Alegre, 13 de Maio e Evaristo da Veiga delimitam, no centro do Rio, talvez o maior ponto de encontro da cidade. Construída no início do século 20, sobre o terreno sagrado de um convento, para se tornar um antro cultural – a “Times Square tupiniquim” – a Cinelândia foi assim batizada porque receberia alguns dos primeiros cinemas da antiga Companhia Cinematographica Brazileira. Seu nome anterior, até hoje presente nas placas azuis das esquinas, é praça Marechal Floriano, e seu primeiro ocupante, um empresário espanhol que, inspirado na Broadway novaiorquina, empreendeu ali uma série de cinemas, teatros e casas de show.
O tempo verticalizou a cultura de massa e sequestrou teatros e cinemas para cativeiros cheios de lojas e pontos de venda. Os shoppings levaram embora o Cine do nome, deixando apenas o resistente Odeon. Sobraram na praça os palácios. Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes, Theatro Municipal e Câmara dos Vereadores. Toneladas de mármore, pedra e pomposidade cercados por grades e feitos para poucos. Incongruentes com a potência democrática daqueles metros quadrados de pedra portuguesa, no coração da cidade. Entre os gigantes político-culturais, acirraram-se as disputas e o perímetro urbano se transformou em palco para as promessas mais reacionárias e mais revoltadas dos comícios políticos e arena para os conflitos mais violentos e mais pacíficos da sociedade e seus mecanismos de repressão.
Alguns dias ficam gravados no chão da Cinelândia como os “100 mil17”, o “1 milhão18” ou os “200” da Ocupa Rio19/OcupaCâmara20 – ocupações urbanas que seguiram a tendência global de tomada local das praças como um exercício de democracia direta e horizontalização das relações humanas. Daqueles que quiseram fazer daquela praça uma casa comum, um espaço de troca permanente e uma fuga das grades que os aprisionavam fora das ruas.
Mais do que ponto de encontro, Cinelândia é passagem e é permanência. Ali passaram e passam todos os dias centenas de milhares de homens e mulheres perdidos entre a vastidão do Aterro do Flamengo e a imensidão da selva de concreto. Por ali passam o metrô, os ônibus e os taxis, carregando outras centenas de milhares de perdidos. Também desfilam os militares e bebem os foliões. Ali reúnem-se os tomadores de decisão e sofrem os indecisos.
A praça do comum é constantemente privatizada, mas eternamente resgatada, reocupada, reencontrada. O espetáculo não está nos cinemas. Está no no chão, nas ocupações temporárias. Os atores somos todos nós. E os conflitos são todos os nossos.
Assembleias populares

As assembleias populares são espaços de debate onde são levantadas e discutidas questões de interesse comum. Ao se pretenderem populares, procuram se manter abertas aos cidadãos em geral, tornando-se seus atores quando bem sucedidas. Ainda que não representem uma novidade, foi a partir das “jornadas de junho” e seus desdobramentos que o surgimento dessas assembleias conheceu um boom. Pipocando em diversas localidades do Brasil, em cidades de todos os portes, várias foram as assembleias que surgiram como uma reação, seja à postura do estado e dos grandes veículos de comunicação às manifestações que tomaram as ruas, seja à maneira como outros espaços de debate popular se organizavam e se organizam, seja à energia e ao recado impulsionado a partir das ruas. Uma das radicais novidades das assembleias é que são feitas no espaço público. O espaço público vira uma nova interface para a participação política. O espaço público vira espaço comum.
A Assembleia do Largo, no Centro do Rio, a Assembleia Popular Zona Sul III, no Largo do Machado e arredores, e a Assembleia Popular – Comissão Popular de Investigação dos ônibus, em frente à Câmara Municipal, são alguns exemplos das diversas formas em que se organizaram e/ou se organizam esses espaços.
Atraindo grupos os mais variados, de estudantes, professores, artistas, militantes de movimentos sociais, participantes dos cada vez mais numerosos coletivos, – e mesmo um grande número dos chamados “cidadãos comuns”, sem filiações prévias, pessoas não inseridas em qualquer instância organizada de participação política, incluindo-se aí cidadãos em situação de rua, – as assembleias populares parecem representar o desejo de protagonismo ou mesmo de participação direta de variados segmentos da população. Tal fenômeno expõe a tensão entre a energia participativa e a inércia política, entre o modelo representativo e a democracia direta, entre a verticalidade e a horizontalidade, entre o institucionalizado e o orgânico. A assembleia vira método, catalizador de processos.

Defendendo o comum do futuro

A escrita coral dos exemplos aqui apresentados é a primeira mostra de uma ontologia em construção, por definição incompleta, dos bens comuns da cidade de Rio de Janeiro. O que mais cabe no mapa carioca do comum? E na cartografia metropolitana, fluminense, dos bens comuns? E o que cabe no mundo que é local, no hiperlocal que é global, na glocalidade do Rio de Janeiro?
As respostas são múltiplas e podem ser enumeradas ad infinitum: a Baía de Guanabara e a luta dos pescadores pela sua defesa ambiental; as ocupações de índios urbanos propondo criar Universidade Indígena no antigo Museu do Índio (em frente ao estádio Maracanã); o Hospital Nise da Silveira virando um Hotel da Loucura aberto a novas experiências criativas; a luta do MST para chegar comida sem agrotóxicos para os moradores do coração da metrópole; a resistência das rodas de samba à privatização das ruas da cidade; o MarcoCivil para garantir a liberdade e neutralidade da rede na internet; o próprio pool genético da população…
Por isso, vale pensar o comum como imaginário com seus conceitos e definições abertas.
Possivelmente, tenha sido em Istambul – tornada em cidade rebelde – onde a multidão chegou mais longe nesta imaginação social, a partir da experiência de Gezi21. O arquiteto e doutor em geografia Ozan Karaman22, comparando as assembleias populares da Turquia com as da Espanha, Grécia e Estados Unidos se referia ao caso particularmente impressionante das práticas de commoning (fazer em comum) de Taksim como uma produção coletiva de espaço em que as pessoas já estavam produzindo ativamente um tipo diferente de vida urbana, um futuro comum urbano:
A luta de Gezi, portanto, não era simplesmente sobre a conservação de um bem comum existente, mas a defesa – por meio da produção – de um comum urbano futuro. Os ocupantes do Parque Gezi não foram apenas a esculpir um espaço de respiração protegido contra os imperativos do capitalismo, e aparelho repressivo do Estado, pois eles também estavam descobrindo e coproduzindo ativamente outras formas de espaço. É precisamente devido a este caráter aberto que o experimento Gezi pode contribuir para um repertório comum de estratégias na luta para expandir comuns futuros.

Se trouxermos esta reflexão sobre a defesa do futuro comum urbano para os acontecimentos do Rio de Janeiro em 2013, podemos pensar na luta dos professores do Estado23, ou por exemplo, o papel das ocupações em relação à segurança. A ocupação da Cinelândia – OcupaCâmara –, além de ter sido um espaço de encontro, de troca, de aulas públicas, de assembleias, teve o efeito, segundo Rodrigo Modenesi24, de pacificar de fato a praça, reduzindo o número de assaltos, graças ao clima de convivência e afetividade criado pela ocupação.
À frente da imaginação social dos bens comuns futuros, está a o passe livre25 ou tarifa zero26, uma ideia que tem como fundamento o entendimento de que o transporte é um direito fundamental. O direito à mobilidade urbana assegura o acesso das pessoas aos demais direitos, como saúde, educação e lazer. Para a maioria das pessoas, o acesso aos direitos fundamentais só pode ser concretizado através do transporte coletivo. Ou seja, para assegurar que o conjunto da população possa desfrutar dos direitos previstos na constituição, o transporte precisa ser público e gratuito.

Mas o desafio em andamento para a cidadania rebelde, de Istambul ou Rio de Janeiro, começa com continuar as conquistas27 do 2013, o ano quando se voltou a falar do direito à cidade, entendido como aquele que envolve a capacidade de a multidão controlar, dirigir, orientar o processo de urbanização, o direito de controlar os processos que determinam a reordenação e configuração da cidade. Em relações sociais urbanas dominadas pelas gangues do capitalismo financeiro, parece razoável pensar que uma parte das opções passa pela intensificação de um internacionalismo metropolitano de baixo a cima, que possa partir do comum como hipótese política para inventar novas formas de instituições permanentes na cidade. Novas funções legislativas, executivas e judiciares – que possibilitem um outro modelo de desenvolvimento baseado na defesa do comum.
Compartilhando táticas e aspirações, Istambul e Rio são laboratórios visíveis desse conflito que acontece numa escala global na cidade genérica contemporânea. Vale lembrar que o shopping center na Praça Taksim não pôde ser construído pelos seus poderosos promotores; as árvores do parque Gezi continuam em pé; e os 20 centavos do valor do aumento de passagem do ônibus no Rio de Janeiro (e muitas outras cidades no Brasil), multiplicados por milhões de viagens durante estes meses, não foram parar nas contas bancarias dos donos do cartel do transporte metropolitano e permanecem nos bolsos da população.

Referencias:

HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Commonwealth. El proyecto de una revolución del común. 2010.

HARVEY, David. Ciudades rebeldes. Del Derecho de la ciudad a revolución urbana. 2012.

DE SOTO, Pablo; DELINIKOLAS, Demitri; DRAGONA, Daphne, DE LAMA, José; ŞENEL, Aslıhan. Mapeando el bien común urbano. Un método paramétrico y audiovisual. 2013.

“Eu tô lutando pelos 10% do PIB para educação e para saúde. Assim como por o aumento da frota de ônibus e a fiscalização da capacidade máxima dos ônibus, que aquí nao é controlado. Isso é muito importante para fazer inmediatamente.” “Esta grande garrafão de plástico cheia de água e para botar dentro as bombas de gás lacrimogêneo. É da galera, um bem comum. É para nos proteger do lacrimogênio, aprendi isso num video na Turquia”.fonte

Essas palavras de um manifestante num protesto em junho no Brasil 1 exemplificam com dramática intensidade o conflito atual em torno da reprodução da vida nas metrópoles contemporâneas. O modelo hegemónico neoliberal promovido pelas elites e corporações, onde o sucesso do capital não vem acompanhado do desenvolvimento para a maior parte da populaçao, está sendo confrontado pelas revoltas que proliferam nas ruas de quase uma centena de paises desde 2011, no novo ciclo de lutas inaugurado nos países árabes do Mediterrâneo.

Nesta encruzilhada, a velha distinção entre o privado e o público não é mais capaz de satisfazer a necessidade de responder a questão fundamental de como compartilhar recursos vitais. O bem comum emerge ao mesmo tempo como o objeto -a demanda de mais recursos para os serviços públicos de saúde e educação- e como a forma de organização -as acampadas ou no caso extremo, a garrafa de água que a multidão usa para defender-se do gás lacrimogênio-. A cidade, seja Fortaleza, Cairo ou Madrid, Reijkiavik, Ankara ou Lisboa, se torna o cenário genérico dessa luta.



Commonwealth como laboratório



Mapping the Commons (Mapeando o bem comum) é um projeto internacional de exploração e representação do bem comum urbano que começou em Atenas2 no final de 2010, ano em que a Grécia perdeu a sua independência financeira. Meses após o primeiro memorando do FMI e a implementação das primeiras medidas de austeridade, a capital grega foi chamada a desempenhar um novo papel. Atenas foi convidada a se tornar a cidade “beta” da crise, a enfrentar, pela primeira vez na Europa, o impasse do capitalismo da doutrina de choque. A metrópole parecia vulnerável, mas também infatigável, e seu território foi aquele em que formas antigas e novas de resistência e contra-práticas estavam prestes a ser formadas, mas também desafiadas.

Inspirado pelo pensamento de Hardt e Negri no livro “Commonwealth: El proyecto de una revolución del común”, a iniciativa Mapping the commons of Athens teve como objetivo estudar e empoderar essas formas emergentes de resistência e produção de riqueza social. Partimos da hipótese do ‘comum’ elaborado por eles sobre a idéia de que, em nosso mundo atual, a produção da riqueza e a vida social dependem em grande medida da comunicação, da cooperação, dos afetos e da criatividade coletiva. O ‘comum’ compreenderia então os ambientes de recursos compartilhados que são gerados pela participação de muitos e que constituem o tecido produtivo essencial da metrópole contemporânea. Se fazemos esta conexão entre o ‘comum’ e a produção, temos que pensar na economia política, no poder, nos rendimentos e nos conflitos.

O projeto adquiriu a forma principal de laboratório temporário onde se encontraram ativistas, artistas, cientistas sociais e estudantes de diferentes disciplinas para explorar e discutir os bens comuns da cidade, uma busca que tomou a forma de um processo de mapeamento. Entendemos a cartografia segundo o proposto por Deleuze e Guattari, e do modo como artistas e ativistas sociais a tem usado durante a última década, como uma atuação que pode se converter em uma reflexão, uma obra de arte, uma ação social. Se a cidade é “a fonte do comum e o receptáculo no qual ele flui” como os filósofos discutem, uma cartografia dos bens comuns de Atenas (uma cidade em situação de crise) seria capaz de realçar suas dinâmicas vivas e suas possibilidades de mudança.

Com este objetivo em mente, a equipe se deparou com um desafio interessante para rastrear a riqueza da metrópole, olhando além do “público” e do “privado” e voltando-se para os afetos, línguas, relações sociais, conhecimentos e interesses da população. Para construir uma cartografia com base nos bens comuns, que em grande medida são abundantes, fluidos e instáveis, era necessário tentar responder a algumas perguntas difíceis: Pode o ‘comum’ ser “localizado” na metrópole contemporânea? Que novas práticas de “fazer comum” ou economias sociais surgiram como resposta à crise? Como o ‘comum’ está sendo protegido das privatizações e das políticas draconianas de austeridade? Quais são as vantagens e os riscos da produção desta cartografia em tempos de agitação e de rebeliões?

Depois de longas discussoes, os tipos de bens comuns mapeados em Atenas foram baseados na coletividade, sociabilidade e no compartilhamento, pois incentivam o acesso livre e aberto. O banco de dados criado foi rico e amplo, variando da linguagem como principal bem comum aos repositórios de software livre; de estacionamentos ocupados e convertidos em parques autogeridos -como Navarinou no coração da cidade- às plataformas digitais para upcycling de objetos; da raiva contra as instituções financeiras e sua expressão coletiva nas ruas à rede de milhares de nós abertos da rede wi-fi comunitária da cidade; da massa crítica de ciclistas que exigem vias que priorizem as pessoas e os ciclistas às plataformas de P2P e de compartilhamento de conteúdos digitais; dos animais em liberdade como companheiros dos humanos ao grafite como expressão artística nas parades das ruas da cidade. Documentários de curta duração foram produzidos sobre os estudos de caso, formando parte de uma vídeo-cartografia interativa na internet.

A segunda edição do laboratório aconteceu em Istambul3, num momento em que a cidade estava sendo transformada radicalmente com as privatizações em larga escala e com grandes construções, devido ao aumento das pressões das políticas e empreedimentos neo-liberais. Os bens comuns urbanos como os espaços públicos, o direito de habitar na cidade, o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão nesses processos, e os espaços verdes estavam sob ameaça de serem reduzidos numa intensidade jamais vista. Novas leis criadas pelo Estado para transformar locais sob o risco de desastre natural foram utilizadas pelas autoridades para demolir e reconstruir as áreas de habitação no centro de Istambul, desapropriando os inquilinos ou removendo-os para habitação na periferia. A lei anunciando a venda das florestas estaduais fez com que as terras comuns e bosques se tornassem vulneráveis para o agresivo desenvolvimento imobiliário.

Na data do laboratório em novembro de 2012 um enorme número de projetos de grande escala começou a transformar espaços públicos, praças e parques em áreas de demolição para serem transformadas posteriormente em espaços privados. O Parque Gezi, na praça Taksim, era o epicentro geográfico e simbólico dessa destruição, onde duas centenas de árvores seriam cortadas para construir um shopping center com a forma do antigo edifício do quartel militar otomano no local, para abrigar atividades culturais e comerciais controladas privadamente. A praça Taksim, um dos lugares mais importantes para a participação cidadã e para o exercício do dissenso, foi transformada num canteiro de obras para ser um espaço vazio, sem conteúdo. A vida foi esvaziada da praça, o cenário político das grandes manifestações estava à deriva devido ao longo prazo das obras de transformação, e que dificilmente voltaría a existir após as alterações espaciais planejadas.

Nesse contexto, a oficina de mapeamento desempenhou um papel intermediatório em compreender e revelar os conflitos em relação aos bens comuns de Istambul, levantar discussões em torno do próprio conceito de comum, e o mais importante, ser uma parte da ação na cidade quando as luta pelo ‘comum’ estavam sendo realizadas, cartografando e produzindo vídeos desses momentos históricos. Para isso, o laboratório teve lugar inicialmente na rua, através, por exemplo, de entrevistas e filmagens em Fener-Balat-Ayvansaray, onde uma plataforma de discussão e ação foi criada com êxito contra a nova lei de transformação do espaço urbano; em Tarlabasi, participando de uma festa de casamento curda na rua e uma cozinha de apoio aos imigrantes; na Universidade Técnica de Istambul, entrevistando professores e estudantes participantes de uma manifestação contra a desinformação e a censura televisiva dos protestos, e, por suposto, na praça Taksim onde uma grande plataforma se articulava para defender o parque Gezi e a praça como o lugar da democracia da cidade, uma resistência que se transformou em acontecimento global poucos meses depois.



Cidades rebeldes conectadas


“Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil saindo da inércia!”
“Acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia!”
Gritos nas ruas de Rio de Janeiro e Sao Paulo, Atos contro o aumento diaa 13 e 17 de junho.

Antes de junho de 2013, essas frases seriam gritos improváveis, quase impossíveis. Depois de junho, qualquer pessoa que tenha participado nos protestos do Brasil reconhece nelas a voz das ruas. Os primeiros atos contra o aumento do passagem de ônibus organizados pelo Movimento Passe Livre em São Paulo colocaram a pauta da mobilidade urbana no centro do foco. E os jovens do Rio entraram numa forte sinergia global. Nessas mesmas duas semanas, as mídias sociais e os blogs ativistas tinham divulgado a formidável resistência do povo turco na praça Taksim de Istambul. A luta popular contra a destruição do parque Gezi se tornou um ícone. E de alguma forma, as lutas urbanas dispersas acharam seus gritos comuns. Diren Gezi, que significa ‘resistência Gezi’, entrou em contato com o movimento-coletivo Fica Ficus de Belo Horizonte. O movimento Salve o Cocó de Fortaleza gritava, “o parque Cocó é nosso parque Gezi”. Em São Paulo e no Rio, as ruas foram sendo ocupadas, entrelaçadas por seus gritos de guerra e palavras de revolta que viralizavam nas redes digitais. Por que, de forma tão súbita, as lutas urbanas ficaram interconectadas? Por que duas contas turcas de twitter apareciam no grafico de visualização de redes no primeiro grande ato do Movimento Passe Livre em São Paulo? Por que as bandeiras brasileiras estavam presentes no parque Gezi?

Sem ter respostas definitivas, a explosão das lutas no Rio de Janeiro a partir das jornadas de junho transformou a metrópole carioca no exemplo mais nítido das cidades rebeldes das que fala David Harvey. Do “Maraca é nosso” (a proposta contra a privatização do Maracanã) aos Comitês Populares da Copa, passando pela proliferação de aulas públicas e as ocupações temporárias, o espaço urbano e sua gestão/uso como bem comum adquiriou uma pulsão coletiva sem precedentes:

“Mas quando arrombaram a porteira da rua, muitos outros desejos se manifestaram. Falamos de desejos e não de reivindicações, porque estas podem ser satisfeitas. O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multitudinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva.
Tem a ver com a certeza de que o transporte deveria ser um bem comum, assim como o verde da praça Taksim, assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a cidade, e de que toda espécie de “enclosure” é um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum.” Peter Pal Perbart. “Eu sou ninghem”.

Mapeando o Bem Comum do Rio de Janeiro foi proposto no calor dessa insurgência multitudinaria, trazendo a experiencia do aprendido em Atenas e Istanbul. Realizar pela primera vez o laboratorio no continente sulamericano tinha enorme interesse por ser este um território da maior relevância e experimentação política e social na última década. Adicionalmente o Brasil, como toda a América Latina, tem características históricas e presentes próprias em relação ao ‘comum’. Essas relações particulares começam com a linguagem, ainda que a língua portuguesa não tenha uma palavra exclusiva equivalente a “commons” (inglês) ou “procomún” (espanhol). Porém, a história de Portugal tem fatos, processos e métodos ao redor da propriedade ou da gestão coletiva que estão dentro do campo semântico dos “commons”. É fato, que tanto, a Inglaterra como Espanha têm tido mais práticas ao redor do ‘comum’ ao longo da história, principalmente na governança. Mas é curioso como a história portuguesa muda no momento da expansão colonial. Foi no Brasil, terra de encontro de culturas africanas, indígenas e portuguesas onde as “práticas do comum” foram e são importantes.

Esse ‘comum’ advém de tradições ibéricas (faixanais, rossios, propiedades comunais), da cultura afro (quilombos, criação cultural coletiva, propriedades conjuntas) e indigenas (propiedade coletiva, malokas). Do mutirão ao conceito de ‘comunidade’ que substitui a palavra ‘favela’, o Brasil é uma celeiro de práticas do ‘comum’. E de fato, como aponta o pesquisador espanhol Antonio de la Fuente, não “existe” bem comum sem uma comunidade que cuide desse ‘comum’. O commonning – as práticas do comum – são uma condição necessária da existência do bem comum.

No Brasil, o mercado e o capitalismo estão castigando o bem comum sem piedade. O capital depreda o ‘comum’, transforma ele em commodity, seja uma música funk criada de forma coletiva e que acaba numa gravadora internacional – ou proibida quando a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) se instala numa favela – ou um espaço urbano coletivo é inserido na onda da especulação imobiliária. O ‘comum’ é transformado numa grife, em mercadoria. Mas o ‘comum’ também pode ser castigado pelo poder público. O poder público também pode ser um dos grandes inimigos do ‘comum’ – como na privatização do Estádio do Maracanã ou através das remoções forçadas de favelas, como a do Horto, da Providência, o a Vila Autódromo. Essas questões que estão no contexto de metrópoles históricamente em estado de exceção como o Rio de Janeiro foram o objeto deste projeto de mapeamento.



Um processo caótico e recombinante



O laboratorio foi proposto como parte de um curso de extensão da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO- UFRJ), oferecida aos alunos de graduação e aberto a pessoas de fora da universidade. Alguns dos participantes já estavam investigando questões relacionadas como o movimento negro, o samba ou a mobilidade urbana. Ultrapassando os muros da academia, o laboratório se desenhou como um processo orgânico, aberto, expandido, incentivando o trabalho em equipe e o pensar coletivamente.

Um processo iniciado três meses depois de terem começado os protestos e que contou com a participação de cerca de 50 pessoas de todas as regiões do Rio de Janeiro, incluyendo áreas mais afetadas pelas atuais transformações urbanas como o morro da Providência junto a zona portuária no Centro à Zona Sul, a zona rica da cidade, apesar da existência de diversas favelas, da Zona Norte, a parte suburbana e periférica à Lapa, zona boêmia no Centro do Rio de Janeiro.

A tekné do laboratório foi a mesma que os movimentos em rede das lutas globais atuais como o 15M ou Occupy: um dispositivo tecnopolítico que incluye blogs, pads, fanpages e mapas que permitem as pessoas incorporar livremente os conteúdos durante o processo. Os equipes são flexíveis e não comparecem sempre as mesmas pessoas nas oficinas, outras acompanham as atividades através da internet.

O método do laboratório propõe utilizar parâmetros para caracterizar os bens comuns selecionados. O primeiro parâmetro é a definição do nome que representa o bem comum discutido. Em seguida, pensa-se nos atores que tentam preservar este determinado bem comum. O terceiro parâmetro analisado foi o processo pelo qual os atores tentar preservar tal bem comum, a forma de gerenciamento. O ultimo passo é distinguir o conflito, ou seja, a maneira pela qual o bem comum está ameaçado. Os parâmetros se tornam uma matriz online que é um das maiores inovações do projeto.
Apresentamos a continuação os bens comuns que foram trabalhados pelos participantes do laboratório:



Mobilidade urbana






Transporte é direito, não mercadoria. A frase reproduzida em centenas de cartazes durante os protestos contra o aumento das passagens não é trivial. Em praticamente todas as cidades do país o serviço de transporte coletivo urbano é operado pela iniciativa privada. No Rio de Janeiro, há fortes indícios de que o sistema de transporte seja operado por um cartel, que detém o controle sobre os preços das passagens. Grandes financiadoras da campanha eleitoral do atual prefeito, as empresas de ônibus cobram essa fatura nos contratos, que prevêem uma sequência de aumentos nas tarifas – todas acima da inflação. A distinção entre o público e o privado se revela frágil em um contexto no qual se confundem os interesses das empresas e da própria prefeitura.

Enquanto Paes anuncia os aumentos tarifários e o governador do estado, Sergio Cabral, utiliza um helicóptero para seus deslocamentos, a população sofre cotidianamente com ônibus precários, superlotação, atrasos e falta de segurança nos coletivos. Nos trens da Supervia, os usuários são tratados como gado. Nas barcas, o serviço foi privatizado em 1998 e, desde então, a maioria dos acordos estipulados nos contratos não foi efetivado. A travessia entre os terminais de Charitas e Praça XV é a segunda mais cara do mundo (num comparativo entre distância e preço total), ficando atrás apenas do passeio pela Estátua da Liberdade em Nova Iorque – lembrando que a travessia Rio-Niterói não é um passeio turístico, mas um deslocamento pendular que milhares de trabalhadores e estudantes enfrentam cotidianamente. O transporte é hoje, de acordo com o IBGE, o terceiro maior gasto da família brasileira e mais de 37 milhões de pessoas não podem usar o transporte coletivo por não ter como pagar.

Nesse contexto, a afirmação do transporte público como direito se insurge contra o controle privado sobre o direito de ir e vir das pessoas. As lutas contra o aumento da passagem, que se amplificaram consideravelmente desde junho de 2013, colocaram em cheque a lógica mercantil que se encontrava, de um modo geral, naturalizada como algo evidente e imutável. Durante esse período de reivindicações, questionamentos e embates, foi se consolidando a noção de que a mobilidade urbana diz respeito fundamentalmente ao nosso direito à cidade e de que o controle privado sobre o sistema de transporte restringe esse direito, impossibilitando uma grande parcela da população de circular livremente pela cidade.

Nesse sentido, podemos pensar que a mobilidade urbana emerge como um comum no próprio processo de luta pela sua retomada. As manifestações, assembleias e ocupações que passaram a fazer parte do cotidiano da cidade desde junho sinalizam a produção do comum tanto como objeto dessas lutas coletivas, quanto como forma de organização, buscando proteger o comum das privatizações e parcerias público-privadas do neoliberalismo totalitário e ao mesmo tempo instituindo novas práticas de “fazer comum”. É interessante notar, nesse aspecto, a centralidade do tema da mobilidade nesses espaços de produção do comum. Além de ter constituído o estopim das primeiras manifestações de junho, as questões relativas à mobilidade vem atravessando e constituindo esses espaços de construção (do) comum, desde a primeira ocupação da Câmara Municipal, passando pelas mais criativas manifestações e intervenções pela CPI dos ônibus – OcupaÔnibus, Casamento da Dona Baratinha, Baratox, para citar apenas algumas que ficaram mais conhecidas – até a organização, após o fracasso da CPI, de uma Comissão Popular de Investigação dos Ônibus.

Se os conflitos podem ajudar a localizar a existência de comuns em disputa, em 2013, as ruas do Rio e do Brasil deixaram muito claro que a mobilidade urbana é hoje um dos mais importantes comuns em processo de acirrada disputa contra os interesses do capital.



Cinelândia






Avenida Rio Branco, Araújo Porto Alegre, 13 de Maio e Evaristo da Veiga delimitam, no Centro do Rio de Janeiro, o local que talvez seja o maior ponto de encontro da cidade. Construída no início do século XX, sob o terreno sagrado de um convento, para se tornar um antro cultural – a Times Square tupiniquim – a Cinelândia assim foi batizada por receber ali alguns dos primeiros cinemas da Companhia Cinematographica Brazileira.

Seu primeiro nome, até hoje presente nas placas azuis das esquinas, é Marechal Floriano, e seu primeiro ocupante, um empresário espanhol que, inspirado na Broadway, empreendeu ali uma série de cinemas, teatros e casas de show.

O tempo verticalizou a cultura de massa e sequestrou teatros e cinemas para cativeiros cheios de lojas e pontos de venda. Os shoppings levaram embora o Cine da Lândia, deixando o ainda resistente Odeon. Sobraram para a praça, os palácios. Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes, Theatro Municipal, Câmara dos Vereadores. Toneladas de mármore, pedra e pomposidade gradeados, feitos para poucos. Incongruentes com a potência democrática daqueles metros quadrados de pedra portuguesa.

Entre os gigantes político-culturais, acirraram-se as disputas e o perímetro urbano se transformou em palco para as promessas mais reacionárias e mais revoltadas dos comícios políticos e arena para os conflitos mais violentos e mais pacíficos da sociedade e seus mecanismos de repressão.

Alguns dias ficam gravados no chão da Cinelândia como os “100 mil”, os “1 milhão” de 1963/2013 ou os “200” do Ocupa Rio/OcupaCâmara, ocupações urbanas que seguiram a tendência global de tomada local das praças como um exercício de democracia direta e horizontalização das relações humanas, que quiseram fazer daquela praça, uma casa comum, um espaço de troca permanente e uma fuga das grades que os aprisionavam fora das ruas.

Mais do que ponto de encontro, Cinelândia é passagem e é permanência. Ali passaram e passam todos os dias centenas de milhares de homens e mulheres perdidos entre a vastidão do Aterro do Flamengo e a imensidão da selva de concreto. Por ali passam o metrô, os ônibus e os taxis, carregando outras centenas de milhares de perdidos. Também desfilam os militares e bebem os foliões. Ali reunem-se os tomadores de decisão e sofrem os indecisos e indecididos.

A praça do comum é constantemente privatizada, mas eternamente resgatada, reocupada, reencontrada. O espetáculo não está nos cines. Está no amarelinho, no verdinho, no chão, nas ocupações temporarias. Os atores somos todos nós. E os conflitos são todos os nossos.



Assembleias populares






As assembleias populares são espaços de debate onde são levantadas e discutidas questões de interesse comum. Ao se pretenderem populares, procuram se manter abertas aos cidadãos em geral, sendo estes seus atores quando bem sucedidas.

Ainda que não representem uma novidade, foi a partir das “jornadas de junho” e seus desdobramentos que o surgimento dessas assembleias conheceu um boom. Pipocando em diversas localidades do Brasil, em cidades de todos os portes, várias foram as assembleias que surgiram como uma reação, seja à postura do estado e dos grandes veículos de comunicação às manifestações que tomaram as ruas, seja à maneira como outros espaços de debate popular se organizavam e se organizam, seja à energia e ao recado impulsionado a partir das ruas. Uma das radicais novidades das assembleias é que são feitas no espaço público. O espaço público vira uma nova interfaz de participação política. O espaço público vira espaço comum.

A Assembleia do Largo, no Centro do Rio, a Assembleia Popular Zona Sul III, no Largo do Machado e arredores, e a Assembleia Popular – Comissão Popular de Investigação dos ônibus, em frente à Câmara Municipal, são alguns exemplos das diversas formas em que se organizaram e/ou se organizam esses espaços.

Atraindo grupos os mais variados, de estudantes a professores, artistas, militantes de movimentos sociais, participantes dos cada vez mais numerosos coletivos, e mesmo um grande número dos que normalmente são conhecidos como cidadãos comuns, pessoas não inseridas em qualquer instância organizada de participação política, incluindo-se aí cidadãos em situação de rua, as assembleias populares parecem representar o desejo de protagonismo ou mesmo participação direta por parte de variados segmentos da população. Tal fenômeno expõe a tensão entre a energia participativa e a inércia política, entre o modelo representativo e a democracia direta, entre a verticalidade e a horizontalidade, entre o institucionalizado e o orgânico. A assembleia – esse hardware aberta – vira método, software, catalizador de processos.

O mapeamento das assembleias populares pode ser uma ferramenta que, ao tornar mais visualizável e acessível seu conjunto e fornecer mecanismos para intervenção/interação por parte dos atores envolvidos, ajude seu fortalecimento enquanto espaço de debate e conscientização política, quiçá de decisão, deliberação e autodeterminação populares. Para tanto, é necessário em primeiro lugar entender e fortalecer as dinâmicas que fazem do espaço público, seja ele físico ou virtual, um espaço comum no que tange o debate e as deliberações políticas, para em seguida fornecer ferramentas que estimulem a interconexão desses espaços e a construção de sua memória.

O objeto deste trabalho inclui assembleias, ativas ou não, cuja a ocorrência se dê ou tenha se dado em espaços físicos e/ou virtuais, dentro da cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana. Ainda que seja polêmico que um grupo de discussão que atue apenas virtualmente possa ser considerado popular, sua inserção aqui é pertinente uma vez que muitos deles iniciaram suas atividades como verdadeiras assembleias populares, com local físico e data de encontro, e sua manutenção nos ambientes virtuais representa um esforço para que não se perdesse o acúmulo construído com a experiência anterior. A delimitação geográfica responde a uma questão prática (número de assembleias a serem pesquisadas e proximidade geográfica) e ao fato de ser o Rio de Janeiro uma das capitais que mais seguiu na resistência ao modelo imposto, seja através de atos públicos, assembleias ou ocupações.



Os Memes da revolta



Se a linguagem é um dos principais bem comum da produçao social, os memes, as unidade de informação que se multiplicam de cérebro em cérebro -ideias ou partes de ideias, línguas/palavras, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais- são a definiçao da “linguagem como vírus”.

No contexto das manifestações ocorridas no Rio de Janeiro a partir de Junho de 2013, as vozes da cidade rebelada circularam pelas redes, ruas, avenidas e praças ocupadas por multidões como expressões da indignação de milhares de cidadãos e cidadãs que convergiram em sua diversidade e proliferaram em redes afetivas físicas e digitais pelas principais cidades do país.

Os Hashtags são os memes codificados com a sintaxes do microblogging: #vemprarua #protestorj #passelivre #contraoaumento #ocupaCabral #ocupaCamara #cpidosonibus #naovaiterCopa #AldeiaMaracana #ForaCabral, #brnasruas. Propostos por AnonymousRio, Coletivo Projetação, Passe Livre, Comités Populares da Copa, Geração Invencível, Black Bloc, OcupaCabral, Educação Municipal e Estadual do Rio em GREVE, Rio Na Rua, Ocupa Câmara Rio, Anonymous Rio, Diário de um manifestante. Eles são ‘comuns’ pela própria arquitetura do Twitter, através da adesão das pessoas conectadas e que converte e prioriza um #hashtag sobre outro.

O desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo se tornou um acontecimento emblemático e um dos símbolos mais marcantes do processo de criação coletiva que os protestos produziram. Amarildo de Souza desapareceu no dia 14 de julho de 2013 em meio da onda de manifestações na cidade do Rio de Janeiro contra os gastos públicos e as desocupações forçadas de moradores pelas obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, o aumento das passagens do ônibus e do metrô, o autoritarismo e a corrupção na gestão pública e por mais recursos para a educação e a saúde, entre outras reivindicações que se acumulavam na pauta social.

Uma proliferação de ações multitudinárias plenas de cooperação, afetos e criatividade resultaram em produções imateriais de um novo bem comum – palavras da revolta – emergentes dessas múltiplas participações geradas no corpo social da cidade e que transformaram Amarildo em um símbolo dos desaparecidos pela violência policial contra os mais pobres e negros. #CadêOAmarildo #OndeEstáOAmarildo, corpos e vozes expressavam nas ruas e nas redes globais sua indignação e solidariedade frente a insensibilidade com perda do direito à vida pelos Amarildos do Brasil.

Uma cidade afetiva foi reinventada rompendo com as camadas estáticas dos fatos e das coisas submersas. Amarildo foi apropriado e transformado em signo mimético de todos os medos da sub cidade. Amarildo evanesceu, a cidade tremeu, do medo à pulsação. Lembrando a chacina de 10 mortos na favela de Maré, o Coletivo Projetação (artivistas surgidos nas manifestações) crearam o manifesto poético Amar é/A maré/Amarildo, que se contagiou como um meme e chegando a ser projetado em innumerabeis muros da cidade, incluyendo as façadas dos predios do bairro de Leblon próximos da casa do governador.



A educaçao



Atores: Crianças entre 5 e 12 anos, moradoras de cada uma das regiões da cidade do Rio de Janeiro; Meios de comunicação; Família; Comunidade; Escola; Objetos simbólicos dos processos atuais (exemplos: máscara de gás, máscara Anonnymous, máscara Black Blocs, imagens de crianças nas manifestações, imagens dos protestos).

Processo: Assimilação dos acontecimentos atuais (manifestações, UPP, remoções, violência, greve dos professores etc.)

Conflito: A vulnerabilidade do imaginário infantil tende a facilitar a absorção e a reprodução dos discursos hegemônicos que deslegitimam e criminalizam as práticas democráticas de reivindicação de direitos, fator que contribui para o enfraquecimento da formação política e cidadã dos indivíduos ao longo do tempo.


Entre agosto e outubro de 2013, professores da rede estadual e municipal do Rio de Janeiro paralisaram suas atividades a fim de reivindicar melhores condições de trabalho (aumento salarial, autonomia pedagógica, mínimo de dois tempos por semana para cada disciplina etc.). Se não bastasse a luta para comprovar o óbvio, os educadores do Estado da UPP tiveram que resistir à truculência da Polícia que, na desocupação da Câmara dos Vereadores, por exemplo, chegou a prender três manifestantes e a agredir cerca de vinte professores.

Em um momento de lutas como o vivido atualmente, evidencia-se quão distante o Brasil da potência econômica emergente está do Brasil de Paulo Freire, da educação redentora, da educação como prática de liberdade, de função política, cotidiana e coletiva, da educação como bem comum. Trazer Paulo Freire para pensar a educação como um bem em disputa no Brasil é, no mínimo, oportuno se considerarmos que há quase 50 anos, em 1964, o educador brasileiro conhecido mundialmente pela “pedagogia do oprimido”, que defende a leitura de mundo como método educacional de transformação social, escrevia “Educação como prática da liberdade” em exílio, logo após a interrupção do programa de alfabetização de adultos que planejava reproduzir para mais de 20 mil círculos de cultura Brasil adentro a experiência positiva do método realizado com 300 trabalhadores rurais que foram alfabetizados em 45 dias.

O educador entendia a democracia não apenas como forma política, mas, sobretudo, como forma de vida. Seu pensamento recai na crença potencial do homem como sujeito ativo, que pensa, que debate, que discute e que transforma. Sua proposta educacional, especialmente a de alfabetização, parte de uma seleção de palavras carregadas de experiências vividas, as “palavras geradoras”, que dão início ao processo de alfabetização criado pelo educador nordestino. Vivencia-se hoje, provavelmente mais que em qualquer período histórico no Brasil, um momento de profusão de palavras geradoras e de material rico de experiência vindo das ruas, a sala de aula da vida, que nos fazem questionar: quais sentidos os cariocas têm atribuído a palavras como manifestação, protesto, vandalismo, Amarildo etc.?

Esses questionamentos nos levaram a campo. Fomos buscar nos olhares, nos desenhos, nas falas e nas experiências de educadores e de indivíduos em formação (sim, crianças) os sentidos em construção acerca dos acontecimentos de 2013. Nesse caminho, encontramos Rafael Rodrigues (professor da rede municipal do Rio, da Zona Norte, ativista, levou alguns tiros de bala de borracha entre uma manifestação e outra e já foi fichado pela polícia) que assinalou a importância da escola, a partir de sua função mediadora, na promoção de oportunidades de discussão, de debate, e de construção democrática de conhecimento transformador a partir da realidade das próprias crianças. Ao citar exemplos de mudanças no comportamento dos alunos a partir da atuação dos professores, Rafael relembra a atitude de alguns estudantes quando convocados para fazer as provas do município e do MEC que o sindicato e alguns professores, em protesto, se negaram a aplicar: “Alguns alunos de algumas escolas começaram a boicotar essas provas. Não queriam fazer a prova. Isso tem criado, e ano que vem vai ser muito mais forte, essa reverberação na atitude dos alunos ”.

Dessa forma, evidencia-se quão múltiplos são os atores que fazem parte do processo de formação dos indivíduos da atual geração, tal como seus interesses – que caracterizam o conflito em questão neste bem. Assim, além de pensar na educação hoje, precária, esquecida, violentada pelo aparelho repressor e protegida pelo devir Black Bloc, o Black Prof, emergiu também a necessidade de estudar especificamente outro bem comum relacionado a ela como um exercício de análise do presente sobre o futuro. Por isso, escolhemos mapear o imaginário infantil como objeto do comum educação por considerá-lo um “lugar” de disputa de sentidos ainda mais vulnerável, já que diz respeito a indivíduos em formação. Por acreditarmos que as ideias formadas na infância contribuem para a formação do cidadão de amanhã, estamos num processo de mapeamento das imagens que estão sendo construídas pelas nossas crianças a fim de descobrir formas lúdicas e criativas de ressignificação, isso por que estamos encontrando, na maioria dos casos (especialmente naqueles em que a escola, os professores e a família não são significamente atuantes), a reprodução dos discursos hegemônicos que insistem em deslegitimar e criminalizar as práticas democráticas de reivindicações de direitos.

Se existe alguma coisa com a qual concordamos em relação à opinião do jornalista brasileiro Jorge Bastos Moreno (“Crianças dormindo acordam tossindo por causa do gás de pimenta e bombas jogadas contra o Leblon. Desta vez, as coisas foram longe demais”), exposta no Twitter em Julho de 2013 – e talvez essa seja a única – é que o limite de toda e qualquer crueldade se dá quando ela chega a atingir uma criança. A única diferença é que, para nós, não existe diferença da criança do Leblon para a criança da Providência, por exemplo. Por isso, ouvir do Ian (um dos nossos entrevistados), 10 anos, morador do morro, aluno de escola pública, que “manifestação é os caras quebrando banco, quebrando tudo” e, ainda, que quem faz isso é “vândalo” e que aprendeu essa palavra na televisão, significa concordar que, desta vez, as coisas foram longe demais. Mais cruel que acordar tossindo por causa do gás de pimenta é crescer acreditando que é errado lutar pelos seus direitos.



Defendendo o comum do futuro



A escrita coral e polifônica dos exemplos aqui apresentados é a primeira mostra de uma ontologia impossível, por definição incompleta, dos bens comuns da cidade de Rio de Janeiro. O que mais cabe no mapa carioca do comum? E na cartografia metropolitana, fluminense, dos bens comuns? E o que cabe no mundo que é local, no hiperlocal que é global, na globalidade do Rio de Janeiro? As respostas são multiplas4 e podem ser enumeradas ad infinitum: Ocupações de índios urbanos propondo criar Universidade Indígena em frente ao estádio Maracanã; andares do Hospital Nise da Silveira virando um Hotel da Loucura aberto a novas experiências criativas; a Baía de Guanabara e a luta dos pescadores pela sua defesa ambiental; a luta do MST por chegar comida sem agrotóxicos para os moradores do coração da metrópole; o marco civil para garantir a liberdade e neutralidade da rede na internet.

Por isso, vale pensar o comum como imaginário com seus conceitos e definições abertas. Possivelmente tenha sido na cidade rebelde de Istambul onde a multidão chegou mais longe nesta imaginação social, a partir da experiência de Gezi5. O geografo Ozan Karaman, comparando as assembleias populares de Turquia com Espanha, Grécia e Estados Unidos se referia ao caso particularmente impressionante das práticas de commoning de Taksim (práticas de fazer em comum), como uma produção coletiva de espaço onde as pessoas já estavam produzindo ativamente um tipo diferente de vida urbana:

“A luta de Gezi, portanto, não era simplesmente sobre a conservação de um bem comum existente, mas a defesa -por meio da produção- de um comum urbano futuro . Os ocupantes do Parque Gezi não foram apenas a esculpir um espaço de respiração protegido contra os imperativos do capitalismo, e aparelho repressivo do Estado, pois eles também estavam descobrindo e coproduzindo ativamente outras formas de espaço. É precisamente devido a este caráter aberto que o experimento Gezi pode contribuir para um repertório comum de estratégias na luta para expandir comuns futuros.”

Se trazemos esta reflexão sobre a defesa do futuro comum urbano para Rio de Janeiro, podemos pensar por exemplo o papel das ocupações em relação à segurança. A ocupação da Cinelândia -Ocupa Câmara-, além de ter sido um espaço de encontro, de troca, de aulas públicas, de assembleias, teve o efeito, segundo Rodrigo Modenesi, de pacificar de fato a praça, reduzindo o número de assaltos, graças ao clima de convivência criado pela ocupação.

À frente também da imaginação social dos bens comuns futuros está a tarifa zero, uma ideia que tem como fundamento o entendimento de que o transporte é um direito fundamental que assegura o acesso das pessoas aos demais direitos, como saúde, educação e lazer. Tarifa zero6 é o meio mais prático e efetivo de assegurar o direito de ir e vir de toda população nas cidades. Para a maioria das pessoas, o acesso aos direitos fundamentais só pode ser concretizado através do transporte coletivo. Ou seja, para assegurar que o conjunto da população possa desfrutar dos direitos previstos na constituição, o transporte precisa ser público e gratuito.

Podemos pensar que Istambul ou Rio de Janeiro são agora laboratórios centrais de uma experimentação política que aconteçe numa cidade que é genérica, a cidade neoliberal seja na China ou na Grécia. Nessa cidade genérica, tácticas e as aspirações são compartilhadas. O comum urbano aparece como marco conceitual comum desse novo ciclo de lutas, especialmente o inaugurado no Brasil e na Turquia em 2013. Mais, que significa pensar o comum como hipótese política? Prefigura o comum um poder constituinte articulador de novas funções legislativas, executivas e judiciares da multidão? Como crear a Institucionalidade de um outro modelo de desenvolvimento, um desenvolvimento urbano alternativo? A intuição é que as respostas a essas perguntas passam por organizar políticamente oincipiente internacionalismo metropolitano basado na defensa dos bems comuns presentes e futuros.




Por Pablo de Soto, Bernardo Gutiérrez, Francine Tavares, Cael Coelho, Ingrid Machado, Rafael Rezende, Gabriel Nascimento, Erick Rianelli, Rafael Debetto, Joana Duarte, Flora Castro, Laura Bloch, Gabriel Nascimiento, José Ricardo d’ Almeida, Ana Fabricia Tomaszewski, Bia Martins, Clara Mayrink, Dani Naativa, Dayana Souza, Gabriela Pacheco, Julia Coelho, Laura Bloch, Mayara Caetano, André M. Gavazza.


Referencias:

Hard, N. Negri, A (2010). Commonwealth. El proyecto de una revolución del común.

Harvey, D. (2012). Ciudades rebeldes. Del Derecho de la ciudad a revolución urbana.

Karaman, O. (2013) Defending the future commons: the Gezi Experience.