Nem do estado, nem do mercado, o Maraca é nosso!
Taskim e nosso, Istambul e nosso! foi e é a reclamaçao força e a musicalidade que fizo sair na rua a centos de miles de pessoas nas ruas de Istambul. Alexandre Mendes reflexiona nesse artigo publicado no pasado decembro sobre o Maracana; nosso Taksim?
Devido aos incontornáveis limites de agenda, não tenho participado do importante movimento “O Maraca é Nosso”. Contudo, recebendo notícias dos amigos e informações da campanha, arrisco dizer que ele nos coloca um desafio instigante e fundamental, dizendo respeito a um impasse e uma possibilidade. Seríamos capazes de imaginar um bem, ou melhor, uma produção social sem que ela fosse regida por um regime jurídico público ou privado?
Explico porque considero essa questão prioritária. Algumas vezes, ouvi de pessoas que souberam do questionamento sobre a privatização do Maracanã, se não estaríamos trocando seis por meia dúzia, ou, na literalidade do comentário, “uma máfia (do Estado) por outra (do Mercado)”. Da mesma forma, já nos primeiros passos da campanha, deu-se um interessante impasse sobre a exigência de cumprimento da Lei Orgânica Municipal, que impõe a municipalização do estádio. Torná-lo bem público municipal resolveria o problema?
Ora, no primeiro caso, de que adiantaria o Maracanã permanecer nas mãos de uma gestão estatal por diversas vezes questionada? Que confiança nos transmite um governo que comemora em Paris os saques realizados em solo carioca, e que nem sequer é capaz de organizar uma verdadeira audiência pública sobre o tema? No segundo caso, qual seria o ganho efetivo na mudança para uma gestão municipal, no momento em que assistimos uma das mais grosseiras transferências de patrimônio público para o privado (que também atinge pequenos proprietários e possuidores), operada justamente pelo Poder Executivo da Cidade do Rio de Janeiro?
Esses questionamentos não representam apenas mais uma demonstração do velho e cotidiano conformismo, mas atingem, a meu ver, o centro do problema: é possível imaginarmos um bem que não seja público (estatal) nem privado (ou operado por administração privada)? Poderíamos imaginar um uso do equipamento de lazer e esportivo, que não ficasse subordinado às mediações do Estado ou da administração privada (no caso do Maracanã, por longos 35 anos)?
Há pelo menos duas décadas, o debate sobre os bens comuns, ou, na língua inglesa, os commons, tem avançado em bases sólidas e crescentes. Em 1990, duas linhas de construção teórica iniciam seus primeiros ensaios sobre o tema. A primeira é conhecida como vertente neo-institucionalista, cujo expoente é a economista americana (recém-falecida) Elinor Ostrom, autora do livro Governing the Commons: the Evolution of Institutions for Collective Action, lançado naquele ano. A tentativa de descrever e desenvolver novos arranjos institucionais para a governança dos chamados common-pool-resources (água, terra, florestas, oceanos etc.) rendeu a Ostrom nada menos que o prêmio Nobel de Economia em 2009.
A segunda linha, que poderíamos chamar de corrente marxista, inicia com uma publicação do coletivo operaísta denominado Midnight Notes, que, também em 1990, divulga o texto The New Enclosures, afirmando que os bens comuns adquirem uma centralidade inequívoca diante do neoliberalismo, responsável por ter desencadeado “o maior Enclosure do comum global da história”. Para o coletivo, diante das crises daquele momento (década de 70 e 80), o capitalismo iniciou um processo de ampla privatização das terras e florestas, dos modos de produção comunitários, dos recursos naturais, dos bens públicos, do trabalho e até do código genético dos seres vivos. O novo grande cercamento apontou, dessa forma, para o retorno da acumulação primitiva dos bens comuns como estratégia de acumulação do capital, como já teorizava Rosa Luxemburgo, tornando-se também uma nova esfera de conflito e resistência.
De fato, o ciclo de lutas que se inicia com a revolta Zapatista (1994) e percorre as lutas por outra globalização (Seattle, Genova e outras cidades que sediaram encontros do FMI, OMC e G-8); que liga a insurgência boliviana nas guerras do gás e da água aos protestos anti-privatização na América Latina; que relaciona os debates do Fórum Social Mundial à criação de uma nova agenda de direitos, começa a colocar o tema dos bens comuns na ordem do dia.
Em 2001, Naomi Klein, escreve o artigo Reclaiming commons (New Left Review, no 09), constatando o seguinte: “ao mesmo tempo, há frentes de oposição tomando forma em muitas campanhas políticas e movimentos. O espírito que eles compartilham é de uma radical reivindicação dos bens comuns”. Para ela, os cercamentos operados pelo mercado estavam formando uma nova onda de resistência, que tinha como meta prioritária retomar o controle daquilo que estava sendo privatizado.
É exatamente nesse “retomar o controle” que reside um dos aspectos mais interessantes da mobilização em torno dos bens comuns. Ela não reivindica a “estatização” como o remédio para todos os males do mercado, mas afirma: “nem público, nem privado, queremos que os bens sejam comuns!”. Decerto, entender que o Estado também “privatiza” o comum, mesmo sem entregá-lo diretamente ao mercado, é um avanço enorme. Com isso, é possível resistir a qualquer tentação romântica de crítica ao “Estado que não funciona para o povo” ou da legitimação de uma “planificação estatal sem democracia”. Ademais, nos é permitido lembrar que o binômio Estado-Propriedade está na origem da acumulação originária e dos cercamentos e suas “leis sanguinárias”, com bem constatou Marx no Cap. XXIV do Capital.
Não foi por acaso que a burguesia, no início do século XIX, aproximou a propriedade privada dos elementos da antiga soberania, transformando o proprietário em um verdadeiro “reizinho presunçoso”, nos dizeres do historiador do direito Paolo Grossi. Também não é coincidência que os argutos juristas da época utilizaram o direito romano para embasar, em uma tríade, o novo regime de bens (res privatae, res publicae, res nullius), deixando de lado, exatamente, a quarta espécie prevista no Código de Justiniano (534.d.c): a res communes.
Além de dotar o proprietário de características soberanas, o direito moderno subordina a res communes, o ora chamado “bem de uso comum do povo”, ao regime dos bens públicos e de um “interesse geral e coletivo”, do qual a burguesia já havia se apoderado desde o famoso opúsculo de Emmanuel Sieyès, esvaziando o poder constituinte numa democracia representativa de proprietários. Dessa forma, o cercamento dos bens comuns operados na “pré-história” do capitalismo, adquire, finalmente, um contorno jurídico preciso e implacável, que passa pelo dualismo público-privado. Seríamos capazes de enfrentá-lo?
A corrente econômica tem buscado “furar o bloqueio” através da análise de instituições coletivamente criadas e geridas, de sistemas locais e comunitários de administração de bens e de arranjos normativos e costumeiros encontrados na gestão não mercadológica de alguns recursos. O “neo-institucionalismo” significa, exatamente, a busca de novos desenhos institucionais que funcionem para além do binômio público-privado, partindo, inicialmente, de uma base comunitária e participativa.
Com efeito, para Ostrom, no artigo The evolution of norms, rules and rights (1993), o governo dos bens comuns pressupõe: (a) uma clara definição entre os direitos de uso e os bens utilizáveis; (b) formas de participação coletiva na definição e modificação de regras e normas de uso; (c) modos de monitoramento coletivo da aplicação das regras; (d) formas participativas de solução de conflitos e aplicação graduada das sanções estabelecidas; (e) plena autonomia de definição de institucionalidades sem intervenção de agentes externos, sejam do Estado ou do mercado. Essas são as bases, entre outras possíveis, para que não ocorra uma crise de exaustão e destruição dos recursos coletivos, aquilo que o biólogo conservador Garret Hardin definia como “a tragédia do comum”, defendendo não existir vida fora da propriedade pública ou privada, do “estatismo” ou do “privatismo” (HARDIN, G., 1968).
Afirmar que a “tragédia” dos bens comuns é perfeitamente evitável, a partir de arranjos locais, comunitários e participativos, consiste em um ganho importante para os movimentos sociais, especialmente para aqueles que atuam com o meio ambiente e a proteção dos recursos naturais. Para esses movimentos, está claro que o Estado, assim com o mercado, é um dos maiores responsáveis pelo aniquilamento dos recursos ambientais. Pensar nos bens comuns, portanto, é caminhar para a construção de um âmbito livre da dupla ameaça. Mas, logo, teorias e lutas iriam iniciar uma passagem importante: aquela dos commons para o comum.
Não se trata, nessa passagem, de pensarmos apenas os desenhos institucionais para alguns tipos de recursos coletivamente geridos, mas de nos engajarmos por inteiro na produção de uma democracia radical que emerge das crises, tanto do neoliberalismo, como da planificação estatal; tanto das conseqüências da privatização, como as de uma gestão pública sem democracia real. Não estamos, portanto, no terreno limitado da governança sustentável dos commons, mas no conflito em torno da possibilidade de pensarmos novas formas de vida em comum, de reconhecermos as lutas pela emancipação do trabalho, de inventarmos novas maneiras de produção de subjetividade e de diferença, no horizonte em que o capitalismo é assumido como uma relação social.
O comum, nesse sentido, não se reduz apenas aos bens e recursos, mas é a base de tudo que é produzido e de tudo que podemos criar, imaginar e continuar produzindo socialmente, com liberdade e igualdade. Em livro recente, intitulado Commonwealth (2009), os filósofos Antonio Negri e Michael Hardt experimentam uma definição antagonista de comum, que entrelaça o que seria considerado o “mundo material” (o ar, a água, a terra, o solo, as florestas etc.) com os resultados da produção social e a própria “interação social” necessária à produção: “nós consideramos o comum, também e mais significativamente, os resultados da produção social que são necessários para a interação social” (NEGRI, T; HARDT, M. 2009).
Estamos aqui no âmbito em que a linguagem, os afetos, a comunicação, o conhecimento, as interações e relações sociais fazem parte de uma intensa e rica produção social que coagula bens materiais e imateriais em uma dinâmica que diz respeito aos próprios modos de vida. Não é por acaso, que o teórico boliviano Oscar Vega aproxima, no recente livro Errancias: apertura para vivir bien (2011), a noção de “vivir bien” indígena ao comum, buscando “partir desde a pluralidade das formas de vida para articular e conformar, isto é, produzir o comum que nos dá vida, nos permite viver e preservar o vivente” (VEGA, O. 2011).
No capitalismo contemporâneo, o retorno da acumulação originária advém, exatamente, dessa contínua expropriação das bases e dos resultados da produção social do comum. A produção de vida e subjetividade é, assim, a jazida das novas formas de acumulação e expropriação. É por isso que a organização da Copa do Mundo e dos grandes eventos é realizada não somente pela “acumulação por desapossamento”, nos termos de David Harvey (as “zonas de exclusividade” da FIFA e do mercado imobiliário), mas, principalmente, usurpando aquilo que nós produzimos socialmente: o esporte, o futebol, a alegria, a paixão, a inventividade das torcidas, o caxixi indígena, as “carioquices”, a criatividade da cidade, as nossas formas de viver e tudo aquilo que ora se denomina “propriedade intelectual” ou “marcas e patentes”, sob a proteção especial do INPI e do Estado.
Por isso, o movimento em torno do Maracanã é tão importante. Nele, a crítica à privatização é articulada com a afirmação da diferença indígena e de suas territorialidades, com os modos de vida dos frequentadores e atletas que utilizam as piscinas e os centros de treinamento ameaçados de demolição sumária, dos pais e alunos que dão vida a Escola Municipal Friedenreich e dos torcedores que foram criados, desde pequenos, naquele templo mágico que arrepiava todos os presentes e que representava um dos poucos espaços de mixagem social no Rio de Janeiro.
Portanto, o desafio para sair do impasse “usurpação pública ou exploração privada” nos obriga a dizer muitas coisas além de “não à privatização”, como, inclusive, as lutas dos últimos dias deixaram claro. Se, num primeiro passo, é imprescindível evitar a expropriação do Maracanã pela gestão privada do bem público, desde já, por outro lado, deveríamos pensá-lo como um comum que não se reduz à gestão pública através do Estado. E isso diz respeito não apenas à administração do equipamento esportivo, mas à própria teia infinita que, a partir dele, produz mundos e vidas.
Sem dúvida, mais do que nunca, o “Maraca é Nosso”! E o “nosso” aqui pode ser apreendido em um sentido radical: para além do Estado e do mercado, garantindo a continuidade da riqueza e da multiplicidade social, e produzindo uma democracia tão viva quanto à luta que assistimos no sábado e em outras ocasiões.
O Maracanã, nesse sentido, é uma produção do comum. E observando as fotos e os vídeos da campanha já podemos perceber que essa produção, de fato, existe e é fortemente ativa. Nela, os diferentes modos de vida, uns até então desconhecidos, ganham “carne” e afirmam uma cooperação que não aceita a homogeneização imposta pelo Estado-Propriedade. Se as cidades-sede se tornaram o terreno de uma usurpação, sem precedentes, da riqueza e da vida social, é no mesmo espaço que, no ritmo das lutas e da resistência, poderemos engendrar o contrário: a proliferação de novas e democráticas instituições do comum.